O cinema teima em refletir o mundo. 40 anos atrás, o diretor John Carpenter refilmou um terror B dos anos 1950 sobre um alienígena que, como um vírus, destrói um a um dos membros de uma estação de pesquisas na Antártida.
Fracasso nos cinemas em seu lançamento, “O Enigma de Outro Mundo” cresceu em seguidores e em importância ao longo dos anos. Sua trama continua a traçar paralelos com o que acontece do outro lado do espelho – da epidemia da no começo dos anos 1980 à pandemia que ainda não deixa o mundo respirar.
Fazer de seu uma alegoria não estava nos planos de Carpenter ou do roteirista Bill Lancaster. O texto, adaptando tanto a novela “Who Goes There?”, publicada por John W. Campbell em 1938, quanto o filme “O Monstro do Ártico”, de 1951, buscava transformar paranoia em terror. As entrelinhas ficariam a cargo do público.
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Kurt Russell como MacReady em 'O Enigma de Outro Mundo' Imagem: Universal
O que John Carpenter queria, por outro lado, era explorar medos muito reais, principalmente na América no começo dos anos 1980. Com o país ainda lambendo as feridas após a derrota no Vietnã, e lidando com uma nova realidade individualista e egocêntrica trazida pelo governo Reagan, “O Enigma de Outro Mundo” materializou esses temores de forma visceral e explícita.
Um bom filme, afinal, nunca é sobre o que ele parece ser. Uma história com zumbis não é sobre mortos-vivos, e sim sobre como os sobreviventes encaram o novo status quo. A ameaça alienígena em “O Enigma de Outro Mundo” traz elementos de paranoia, de perda de individualidade, de isolamento social extremo, do medo da perda da humanidade.
Acima de tudo, é um filme sobre o medo do desconhecido. Já na primeira cena perdemos o chão entre caos e confusão: em meio à vastidão gelada da Antártida, um helicóptero persegue um cachorro, que tenta se desviar dos tiros que vem do alto. A caçada chega a uma estação de pesquisas americana, e termina com os ocupantes do helicóptero mortos. O que estava acontecendo? Ninguém sabe.
Desvendar essa primeira parte do mistério é a primeira tarefa dos doze homens isolados em meio ao continente gelado. Eles descobrem que a perseguição partiu de uma base norueguesa, e uma pequena expedição liderada pelo piloto MacReady (Kurt Russell) encontra o lugar incinerado, com vestígios de um organismo que parecia um dia ser humano. Mais ainda: algo foi descoberto no gelo, trazido para a superfície e desperto de sua hibernação.
A realidade terrível é que um parasita alienígena agora está infiltrado em meio a novos hospedeiros em potencial. A criatura é capaz de reproduzir qualquer organismo a nível celular, um simulacro humano capaz de dominar todo o planeta em progressão geométrica caso deixe sua tumba gelada. Doze homens. Um deles pode não ser o que parece. Todos são suspeitos.
Carpenter a princípio parece seguir as convenções do cinema de terror, então uma herança dos B dos anos 1950, abraçados agora pelo mainstream com a popularização do cinema fantástico pós “Guerra nas Estrelas”. Logo fica claro, porém, que a ambição do responsável por “Halloween” e “Fuga de Nova York” vai além de uma simples sessão com sustos.
A coisa que veio do espaço não é exatamente um 'milagre' Imagem: Universal
“O Enigma de Outro Mundo” lida, sim, com a paranoia da guerra fria. Torna explícitos – e visualmente arrebatadores – os medos que afligiam uma nação quebrada. As criaturas que representam o alienígena em diversas fases, foram arquitetadas por Rob Bottin, que executou no set efeitos visuais que derretiam e moldavam carne humana, que transformavam corpos em colossos monstruosos. O cinema nunca havia visto nada daquela forma e com aquela escala.
O timing, entretanto, foi desastroso. O alien mortífero de “O Enigma de Outro Mundo” chegou aos cinemas em 25 de junho de 1982 (no Brasil a estreia foi em fevereiro do ano seguinte), encontrando o visitante fofinho de “E.T. – O Extraterrestre”, que então já fazia uma devassa nas bilheterias. Nos Estados Unidos, a fábula de Spielberg fechou as contas com US$ 340 milhões. O pesadelo de Carpenter terminou sua carreira com pouco menos de US$ 14 milhões.
Como boa parte da produção de fantasia, terror e ficção científica da década de 1980, “O Enigma de Outro Mundo” foi aos poucos redescoberto no crescente mercado de VHS. A visão niilista e depressiva de Carpenter pode não ter encontrado uma conexão para a experiência coletiva nos cinemas, mas na solidão de suas casas uma fatia gigante do público reavaliou a obra, suas entrelinhas e ramificações.
Kurt Russell e sua equipe: Isolados na vastidão da Antártida Imagem: Universal
Meu primeiro contato com o filme foi em 1983, em uma sessão dupla de um cinema em cidade do interior, em que um garoto de 10 anos driblava sem maiores problemas as sessões com censura maior. O outro filme foi “Fuga de Nova York”, cravando uma dose perfeita de John Carpenter e Kurt Russell.
Poucas vezes o cinema produziu uma parceria tão espetacular. A dupla se encontrou pela primeira vez em “Elvis” biografia do Rei do Rock feita para a TV em 1979. Alguma coisa clicou, já que o diretor e seu astro se apressaram para repetir a dobradinha em Fuga de Nova York”.
Se existe um filme que merece a alcunha de clássico moderno, certamente é a revelação do anti herói Snake Plissken. No futuro distópico de 1997 (!), a ilha de Manhattan é transformada em uma prisão gigantesca. O avião com o presidente americano cai entre seus muros. Em troca de perdão por seus crimes, e para desativar uma bomba microscópica que vai explodir seu crânio ao fim de uma contagem regressiva, Snake aceita a missão.
O horror da 'coisa': Uma cópia incompleta e escancarada Imagem: Universal
A química perfeita de Kurt Russell com John Carpenter foi traduzida em uma aventura caótica e surpreendente, em que os ótimos personagens surgem como resultado de um roteiro enxuto e esperto. Superar “Fuga de Nova York” (que ganhou uma continuação deliciosamente cafona em 1996) parecia improvável.
“O Enigma de Outro Mundo” mostrou que improvável não é impossível. No papel de MacReady, Russell até parece encarnar mais um anti herói. Mas é só impressão. O que ele mostra no ambiente claustrofóbico tecido por Carpenter é um personagem demasiado humano, que age primeiro por convicção, depois por medo, fechando seu ciclo com um sacrifício que até hoje soa ambíguo.
Ainda mais impressionante é a generosidade de Russell. Sim, ele era o nome principal do elenco. Mas nem por um segundo seu personagem parece mais importante ou mais urgente do que seus pares. De Keith David a Wilford Brimley a Donald Moffat, todos compartilham a mesma excelência em construir pessoas de verdade perdidas em uma situação aparentemente sem esperança.
John Carpenter com Keoith David e Kurt Russell no set Imagem: Universal
Os melhores filmes, em particular os de gênero, são aqueles que não precisam deixar seus temas explícitos. Um problema que acompanha boa parte do cinema de terror atual é escancarar, de cara, que eles são “sobre alguma coisa”. Sobre identidade sexual, sobre desigualdade racial, sobre superar traumas.
Não é ao acaso que as obras que persistem são as que deixam espaço para interpretação, para que a gente, do lado de cá, possa preencher as lacunas de acordo com nossa própria bagagem. Filmes como “Corra!” ou “O Babadook” ou “Hereditário” seguem esse raciocínio.
Quatro décadas depois de seu lançamento, “O Enigma de Outro Mundo” continua uma experiência tão fascinante quanto paradoxal. Sim, Carpenter foi explícito com as vísceras e o sangue e a violência do body horror, da trilha de terror deixada por uma força alienígena violenta e implacável. Mas ele também desenhou uma história que exige pausa e contemplação, um quadro melhor apreciado quando damos um passo atrás.
'O Enigma de Outro Mundo' não é sutil na profanação do corpo humano Imagem: Universal
Um de seus muitos defensores é Quentin Tarantino. Quando fez “Os Oito Odiados” em 2015, com seus personagens isolados pelo frio, em clima de paranoia crescente, o diretor foi explícito ao dizer que seu filme não era só uma homenagem, mas um plágio mesmo, de “O Enigma de Outro Mundo” – até Kurt Russell ele colocou no elenco!
John Carpenter, um diretor que merece a mesma admiração e respeito de seus contemporâneos, como Steven Spielberg e Martin Scorsese, é responsável por alguns dos filmes mais emblemáticos, e não raro subestimados, da história. São dele obras que crescem a cada revisão, como “Starman” e “O Príncipe das Sombras”, como “Eles Vivem” e “Vampiros”.
Em comum, eles trazem temas grandiosos em embalagens intimistas, trabalhos que abraçam paralelos e alegorias sem que sua narrativa esteja mastigada para a plateia. Em um currículo grandioso, “O Enigma de Outro Mundo” ainda se sobressai. “Os Aventureiros do Bairro Proibido”, por sua vez, fecha sua “trilogia” com Kurt Russell nos anos 1980.
Ao criar a maior obra de terror e ficção científica da história – e o melhor filme já feito na visão deste escriba -, Carpenter transformou o medo que todos sentimos em uma experiência sem igual em seu impacto e dualidade. Afinal, ainda não sabemos se a “coisa” sobrevive ao final da jornada. John Carpenter sabe. Quatro décadas depois, ele ainda não vai dizer.
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