Que a é uma ferramenta política, mola de transformações na cultura e sociedade, é fava contada. Mas um disco de rock dos anos 1990 elevou essa máxima a um patamar incomum. E, ironicamente, não foi por causa do conteúdo sonoro, mas por seu inusitado formato de embalagem.
Você conhece a história do design de “Out of Time” (1991) do REM, aquele de “Shiny Happy People” e “Losing my Religion”?
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Para compreender melhor essa história, precisamos voltar alguns anos no tempo, para a libertina década de 1980. Época em que o pecado, a violência e toda sorte de “mau exemplo” inundavam rádios e TVs —pelo menos era assim que conservadores viam Prince, Madonna, Twisted Sister, AC/DC.
Toda essa onda careta culminou na criação do “Parents Music Resource Center”, um órgão civil que queria pressionar autoridades a coibir a circulação de música “imprópria”. Essa mesma associação seria responsável, anos mais tarde, pela inserção dos avisos de “Parental Advisory” em álbuns com letras consideradas explícitas.
Se você comprou CDs de rap ou new metal na segunda metade dos anos 1990, este selinho abaixo é tão familiar quanto sua imagem no espelho
Imagem: Reprodução
Nos lados de cá, do Brasil da Nova República, pouco se falava sobre isso, mas os ventos de patrulha da era Reagan —o famoso “liberal na economia, mas conservador nos costumes”— se tornaram tão intensos que terminaram culminando em um episódio fatídico.
Em 1990, um juiz do sul da Flórida decidiu que um álbum de rap do grupo 2 Live Crew, “As Nasty As They Wanna Be” (1989) soava tão obsceno que não poderia ser vendido ou reproduzido na região. Três dias depois, integrantes do grupo acabaram presos após um show.
A “América” não era o suposto país da liberdade? Só até a página 2? Foi assim que pensou Jeff Ayroff, executivo da Virgin Records. Ele assistiu atônito ao caso pela TV e resolveu tomar uma atitude. Criou a campanha Rock the Vote.
Lançada com pompa em Los Angeles, reunindo progressistas, políticos, músicos como Frank Zappa e executivos como Jeff Gold, da Warner Bros, a ideia era simples: incentivar o voto do eleitorado jovem em políticos que combatessem todo tipo de censura.
Isso gerou propagandas como esta, com Michael Stipe
Em meio ao movimento, gravadoras ainda tinham uma segunda preocupação comercial: bolar a melhor embalagem possível para convencer consumidores a trocarem seus LPs e K7s pelos CDs, recém-tornada a mídia mais consumida no país.
Apesar de não serem novidade no início dos anos 1990, discos compactos ainda eram um bicho de sete cabeças para lojistas. Não haviam gôndolas projetadas para eles, que acabavam expostos nas mesmas seções de vinis, em espaços largos demais para acomodar caixinhas acrílicas.
Para solucionar esse problema de design, a indústria criou um um novo formato de embalagem, que durou pouco, mas fez muito: as longbox. Nada mais que caixas de papelão que continham berços de CDs e eram tão altas quanto a capa de um vinil, mas com metade da largura.
Imagem: Divulgação
E é aí que entra o REM
O grupo de Michael Stipe, conhecido pelo engajamento político, era uma das vozes mais críticas ao suporte. O desperdício de material significaria milhões de árvores derrubadas desnecessariamente. E isso se agravaria com “Out of Time”, com sua distribuição maciça e campanha de marketing agressiva.
Abrir mão das longbox estava fora de cogitação para a Warner, e foi aí que Jeff Gold teve um brilhante lampejo: e se o espaço extra das contracapas fosse utilizado não com fotos ou continuação da arte gráfica, mas para divulgar a Rock the Vote?
O REM adorou a ideia, e Jeff Ayroff sugeriu imprimir na parte inferior, nas dimensões de uma carta postal, uma petição em prol do projeto de lei conhecido como “Motor Voter”
Discutida desde os anos 1970, a proposta queria incentivar o voto nos EUA, onde ele é facultativo. Sugeria que americanos se cadastrassem para as eleições no momento em que tirassem a carteira de motorista em Detrans locais, entre outros facilitadores.
Para exercer a cidadania e pressionar o Congresso, bastava ao fã do REM preencher seus dados na cartela, destacá-la da embalagem do CD e enviá-la por correio ao núcleo da campanha.
Cabe lembrar que, naquela época, essa legislação já valia em alguns estados, mas nunca havia sido aprovada para aplicação nacional. E isso aconteceu graças ao REM.
Imagem: Reprodução
Deu mais do que certo
Um mês após o bem-sucedido lançamento de “Out of Time” —pouco antes de as longbox serem abandonadas pelas gravadoras— 10 mil pessoas enviarem seu apoio à campanha. Elas foram levadas ao Senado pessoalmente por Ayroff.
Com o lobby da indústria, artistas e apelo popular, o Motor Voter foi intensamente discutido até ser aprovado em maio de 1992, mas recebeu veto do então presidente republicano George Bush durante sua campanha à reeleição.
Bill Clinton, no entanto, encampou a ideia e, logo após vencer a disputa presidencial, assinou a lei, que entraria em vigor em 1995. Desde então, o percentual de americanos aptos ao voto passou a crescer no país e mais de 150 milhões usaram Detrans para tirar seu “título de eleitor”.
Resumindo, se um dia surgir em uma mesa de bar ou grupo de Whatsapp a discussão sobre qual é o disco mais politicamente relevante da história —este escriba já testemunhou algo parecido—, o escolhido só pode ser um: “Out of Time”. Nunca um álbum pop alcançou resultados práticos tão rapidamente.
Porque, às vezes, a música é só um detalhe. Um delicioso detalhe.
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E até a próxima datilografada!